Quase desconhecido dos brasileiros, o português Rodrigo de Souza Coutinho foi um dos principais responsáveis pela vinda da Corte, e seus ideais inspiraram a Independência
Nívia Pombo
A idéia de transferir a sede do governo lusitano para o Brasil circulava livremente pelos corredores do poder português. Mas de todos os que defendiam esta decisão, foi D. Rodrigo de Souza Coutinho quem mais trabalhou para pô-la em prática.
D. Rodrigo nasceu em Chaves, no norte de Portugal, em 1755. Cresceu em Lisboa ouvindo as conversas dos adultos sobre as atitudes polêmicas do seu padrinho, Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal (1699-1782), à frente do governo português entre 1750 e 1777. Entre as medidas pombalinas, além de reformas fiscais e educacionais, figuram a expulsão dos jesuítas do território português, o rompimento com o Papado e uma implacável perseguição à alta nobreza, que foi gradativamente afastada do centro de decisões políticas do reino.
D. Rodrigo foi criado junto aos príncipes D. José (1761-1788) e D. João (1767-1826). A educação cortesã incluía aulas de esgrima, cavalaria e dança. Aos 17 anos, ingressou no curso jurídico da Universidade de Coimbra. Na faculdade, tornou-se amigo do professor José Anastácio da Cunha (1744-1787), que costumava reunir alunos para tomar chá, jogar cartas e fazer leituras proibidas de autores libertinos e filósofos iluministas, como Voltaire, d’Alembert e Hobach. Esta prática rendeu ao professor um processo movido pelo Tribunal da Inquisição — acabou preso por “libertinagem”.
Certamente, não foi por coincidência que pouco depois o pai de D. Rodrigo o afastou de Portugal, conseguindo-lhe uma nomeação como embaixador em Turim. D. Rodrigo tinha então 22 anos, e permaneceria na Itália por duas décadas. De lá acompanhou, em 1776, a independência das treze colônias inglesas na América, que dariam origem aos Estados Unidos, e a Revolução Francesa, em 1789. O colapso da monarquia francesa era, para ele, um exemplo de como o fardo tributário constituía um poderoso fermento para insatisfações populares. O mesmo poderia ocorrer nas colônias. Por isso, dedicou parte do seu tempo a estudar assuntos fazendários, como a exploração das minas e a cobrança dos impostos na América portuguesa.
Os acontecimentos franceses também estavam no centro das preocupações de D. João quando ele assumiu o governo, em 1792. Nos domínios coloniais, rebeliões deixavam clara a influência dos ideais iluministas: entre 1786 e 1794, movimentos deste tipo aconteceram em Goa (na Índia), em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Preocupado com a fragilidade de suas possessões, D. João resolveu renovar o gabinete ministerial que herdara da mãe, a rainha D. Maria I. Para assumir a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, escolheu, em 1796, D. Rodrigo de Souza Coutinho.
A pasta reunia a administração de todas as colônias – inclusive as províncias da América que, segundo D. Rodrigo, “se denominam com o genérico nome de Brasil”. Dias depois de tomar posse, enviou instruções aos governadores daquele território, solicitando descrições minuciosas: geografia, demografia, exportação e importação, detalhes sobre a cobrança de impostos. O resultado apareceu no ano seguinte, quando apresentou ao príncipe sua Memória sobre o melhoramento dos domínios de Sua Majestade na América.
O projeto era ambicioso. Pretendia tornar a exploração colonial mais rentável, sem com isso onerar demais os colonos. Era preciso diminuir impostos, extinguir monopólios, incentivar a agricultura, nomear bons governadores (bem como punir os maus) e utilizar métodos modernos de exploração mineral. Mas as colônias continuariam fornecedoras de matérias-primas: antecipando um discurso que vigoraria nos séculos seguintes, D. Rodrigo expressa claramente a idéia de que a vocação econômica do Brasil não é a indústria, mas sim a mineração e a agricultura.
Assombrado pela independência das colônias inglesas, o ministro temia o rompimento do “enlace natural” que envolvia Portugal e Brasil – segundo ele, a parte mais importante de toda a monarquia portuguesa. Para evitar a crise, propunha a criação de um novo “sistema político” para a conservação dos domínios portugueses na América. Nesse sistema, reforçava o “feliz nexo” que ligava todos os domínios lusitanos, apelando para um ideal de unidade no qual o “português nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente português e não se lembre senão da glória e grandeza da monarquia”. Desta forma, D. Rodrigo rompia com idéias importantes defendidas pelo iluminismo do século XVIII, como a que afirmava serem as colônias prejudiciais ao desenvolvimento econômico das metrópoles européias.
Para concretizar seus planos, procurou a ajuda de uma elite de talentos da Colônia, homens com formação na Universidade de Coimbra interessados em colaborar com a administração portuguesa. Encomendou estudos para especialistas como Antônio Pires da Silva Pontes, autor de um ensaio que sugeria a abolição do quinto real (um direito régio de 20% cobrado sobre o ouro), para tornar a exploração das minas mais eficaz. O mineralogista Manuel Ferreira da Câmara Betencourt, que, junto com José Bonifácio (futuro “Patriarca da Independência”), fez uma excursão pelas minas da Saxônia, da Boêmia e da Hungria, foi nomeado Intendente Geral das Minas em 1800. Seu irmão, José de Sá Betencourt, implicado na Inconfidência Mineira (1789), recebeu instruções para analisar minas de cobre e salitre na Bahia. D. Rodrigo incentivou a publicação de obras como O fazendeiro do Brasil (1798), do frei Mariano Veloso, para o aperfeiçoamento da agricultura, e encarregou Hipólito da Costa (1774-1823) de fazer uma viagem aos Estados Unidos para estudar métodos de cultivo “que fossem aplicáveis ao Brasil”.
O ministro também trabalhou para diminuir as diferenças no tratamento dispensado aos súditos do reino e aos das colônias. Aproximou-se de membros da elite mineira que em 1789 tiveram envolvimento com a Inconfidência Mineira, pois entendia como era tênue a linha que separava ideais de reforma política dos sonhos de revolução. Era a primeira vez que um ministro português acionava os filhos das elites brasileiras para participarem da elaboração de planos políticos comuns ao futuro de Portugal e do Brasil. No entanto, em 1798, a descoberta dos planos de uma sublevação envolvendo alfaiates “pardos” na Bahia quase pôs tudo a perder. D. Rodrigo agiu rápido: enviou ordens ao governador D. Fernando José de Portugal para investigar se os “principais da cidade” estavam envolvidos no levante. A resposta não tardou: “Nem entravam pessoas de consideração... ou que tivessem conhecimento e luzes”. E a punição foi severa: condenações à forca, esquartejamentos, açoitamentos e degredo.
Mas seu projeto carecia de apoio na Corte. Intrigas atingiam assuntos políticos e administrativos, ministros disputavam quem iria aconselhar o príncipe e influenciar o destino do Estado. No terreno diplomático, as diferenças surgiam em torno da decisão de se alinhar com a Inglaterra ou com a França. D. Rodrigo, que tomava partido dos ingleses, angariou muitos inimigos.
Vivia às turras também com a princesa Carlota Joaquina. Segundo o historiador Oliveira Lima, a futura rainha detestava o ministro e se divertia dando-lhe apelidos: “doutor redemoinho”, “doutor embrulhada” ou ainda “doutor trapalhada”. Envolvido nos ardis da Corte, D. Rodrigo pediu demissão em 1803, afastando-se da vida pública por quatro anos.
Em 1807, quando Portugal atravessava um momento especialmente difícil, pressionado por Inglaterra e França, D. Rodrigo retornou ao centro das decisões políticas, convocado por D. João para participar das reuniões do Conselho de Estado que decidiriam os rumos do país. Fiel às suas convicções, defendeu o alinhamento com os ingleses e a partida para o Brasil, certo de que a integridade da monarquia dependia da preservação dos domínios na América. Fez as malas e atravessou o Atlântico, acompanhando a família real. Onze anos após ter escrito a Memória sobre o melhoramento, D. Rodrigo chegava ao Rio de Janeiro para cumprir a última etapa de sua longa carreira política.
No Brasil, seus méritos foram reconhecidos por D. João, que lhe concedeu o título de conde de Linhares e o nomeou ministro da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Seu compromisso de desenvolver economicamente o Brasil o colocou diante de alguns dilemas, entre eles o fim do estatuto colonial, situação que inviabilizava a própria criação do império luso-brasileiro.
Inspirado no liberalismo econômico, especialmente nas leituras do teórico britânico Adam Smith (1723-1790), D. Rodrigo participou ativamente das negociações dos tratados assinados em 1810 com a Inglaterra. Entre as cláusulas mais conhecidas, destacam-se as relacionadas à liberdade religiosa e à proibição da Inquisição nas colônias portuguesas. A polêmica girou em torno do artigo que estipulava que os produtos ingleses pagariam impostos de 15% para entrar no Brasil, enquanto os portugueses teriam que desembolsar 16%. Apesar das críticas, D. Rodrigo insistia que Portugal iria “ganhar mais com o aumento que há de ter o Brasil depois dos liberais princípios que V.A.R. [Vossa Alteza Real] mandou estabelecer...”. O tratado também exigia a abolição gradual do tráfico de escravos. D. Rodrigo chegou a esboçar um plano para trazer colonos chineses para substituir a mão-de-obra cativa.
Por aqui realizou velhos projetos, como a abertura de estradas e redes fluviais para facilitar as transações mercantis. Em Minas Gerais, incentivou a abertura da Fábrica de Ferro do Pilar, com o objetivo de diminuir a dependência dos produtos ingleses. Elaborou planos para a criação de ovelhas destinadas à indústria da lã. Planejou o primeiro Banco do Brasil, fundado em 1812. Reformou as tropas de linha e de milícia, construiu novas fortificações e promoveu estudos de defesa militar.
D. Rodrigo morreu no Rio de Janeiro em 1812, acometido por uma “febre maligna”, aos 56 anos. Comentava-se que fora envenenado por seus inimigos políticos. Verdadeira ou não, a tese comprova a existência de profundos rancores cultivados na corte carioca de D. João.
Com ou sem inimizades, a imagem que fica é a de um homem com um incansável desejo de reformas. A morte precoce não lhe permitiu concretizar o projeto de um império que unisse os destinos de Portugal e Brasil, separados definitivamente dez anos depois. Mas seus ideais foram acalentados pela geração dos que compuseram o cenário político da Independência e enfim criaram um império. Não aquele luso-brasileiro, mas o Império do Brasil.
Nívia Pombo é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional e autora da dissertação “Pensamento e ação político-administrativa no Império português: D. Rodrigo de Souza Coutinho (1776-1812)” (UFF, 2002).
Saiba Mais:
LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1999.
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’um homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares 1755-1812. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2002-2006. 2 vols.